Agentes públicos são demandados a reestruturar cidades insustentáveis

As chuvas, que desde dezembro têm castigado os habitantes de onze estados, principalmente os da Bahia e Minas Gerais, provocaram um quadro de devastação que não pode ser explicado apenas pelo volume incomum das precipitações, mesmo para o verão. Ruas alagadas, casas em escombros, pontes e tubulações destruídas, pessoas sem abrigo, água potável e comida são também o resultado da ocupação desordenada dos espaços urbanos e da transformação de áreas periféricas a qualquer custo.

Essa é a conclusão a que chegaram especialistas ao analisarem as imagens e os dados relacionados com os alagamentos que até 6 de janeiro haviam deixado, só na Bahia, 30,9 mil pessoas desabrigadas, 62,7 desalojadas e 26 vítimas fatais. No total, 715,6 pessoas haviam sido afetadas. De acordo com dados coletados pela Confederação Nacional de Municípios (CNM) no Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), onde as prefeituras cadastram informações, as enxurradas já causaram prejuízos de quase R$ 1,7 bilhão ao estado. Desde o início de dezembro de 2021, 154 municípios da região afetada decretaram situação de emergência e 127 cidades obtiveram reconhecimento federal.

Depois do setor agrícola, que sofreu R$ 591,8 milhões em perdas (35,4% do total), o setor de habitações foi o que mais perdeu: R$ 495,3 milhões, correspondendo a 29,7%, com casas danificadas e ou destruídas pelas chuvas. Em terceiro, estão obras de infraestrutura, como pontes, asfaltamento de estradas, ruas, avenidas, entre outros, com R$ 351,6 milhões, correspondendo a quase 21% do total.

De acordo com o último levantamento de estados de emergência e de calamidade pública, em função de chuvas intensas, tempestades e tornados, o Brasil acumulou prejuízos de R$ 10,1, bilhões em 2020. O setor de habitação foi o mais afetado, somando perdas de R$ 8,5 bilhões com a destruição ou danos de moradias. Segundo o levantamento, foram 280.486 moradias danificadas ou destruídas. Os prejuízos em obras públicas aparecem logo em seguida, com impacto negativo em bueiros, calçadas, asfaltamento de ruas e avenidas, o que contribuiu para que rombo chegasse a R$ 2,4 bilhões.

Planejamento

Inquietos com o cenário caótico das últimas semanas, urbanistas e arquitetos alertam para a urgência de o país retomar de forma sistemática a prática elementar do planejamento urbano.

— Além de surgirem como efeitos da convergência do Atlântico Sul e do La Niña, essas chuvas decorrem, como sabemos, de mudanças climáticas que estão em curso no planeta, a exemplo das que arrasaram recentemente regiões que vão da Alemanha ao Sudeste Asiático. O fato é que as chuvas ocorridas no início de dezembro se repetiram de maneira arrasadora às vésperas do Natal. A repetição de um volume maior de precipitação nesse período certamente contribuiu para a tragédia ocorrida, porque mal deu tempo de as águas serem ou absorvidas no solo ou encaminhadas pelos córregos aos rios e esses ao mar. Entretanto, [esses fenômenos] são agravados por intervenções dos seres humanos. O desmatamento e a destruição das matas ciliares em nossos rios, com a chegada de pastagens até as margens nas áreas rurais, por exemplo, fazem com que a velocidade das águas nos leitos se acelerem e não sejam retidas mais a montante desses cursos de água — explica o professor de arquitetura da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) Joel Pereira Felipe.

Quando chegam às cidades, acrescenta o arquiteto, essas torrentes líquidas encontram uma situação de emparedamento dos córregos que são canalizados ou até “tamponados”, ou seja, ocultados sob vias de fundo de vale asfaltadas ou cimentadas:

— Isso aumenta mais ainda a velocidade das águas e, combinado à impermeabilização do solo pela pavimentação de ruas, adensamento com edificações, quintais das casas e condomínios com calçadas, em vez de jardins, não permitem a drenagem natural.

Outra questão considerada “grave” pelo professor é o uso desses cursos d’água como “depósito móvel e flutuante de lixo e entulho”:

— Como “destino final” dessa irresponsabilidade e ausência de educação ambiental, observamos a chegada nas praias de Ilhéus de para-choques de carros, tubos de TV, portas de geladeiras e sofás.

De acordo com o arquiteto Nilton de Lima Junior, representante de Goiás no Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo (CAU), a ocupação de áreas de preservação ambiental, principalmente as alagáveis, bem como as de encostas, sujeitas a deslizamentos, são possivelmente os grandes responsáveis pelo quadro verificado na Bahia, mas escondem “problemas maiores”. Um deles é o descaso do poder público em coibir essas ocupações e, ao mesmo tempo, fornecer alternativas de moradia.

— Mas não é só não permitir, é oferecer outra alternativa. Ninguém em sã consciência vai morar e levar seus filhos para áreas de risco. Vão pela completa falta de recursos econômicos e físicos, pois essas áreas são, normalmente, públicas, ou extremamente baratas, justamente pelos riscos que representam. Em que lugar um pai de família deve morar, se não tem recursos suficientes para comprar ou alugar uma moradia digna? Por que o Estado não fornece o mínimo a esses cidadãos?

Lima Júnior observa que essas questões são complexas, envolvem muitas responsabilidades e não se restringem aos municípios, “que é onde se torna transparente o grande problema brasileiro”:

— Do ponto de vista do planejamento urbano falta muito. Diria que falta inclusive planejamento, pois o que vemos termina sendo ocupação urbana e não planejamento, na acepção da palavra. A cidade deve ser acolhedora, deve se preocupar com cada um de seus cidadãos, com seu emprego, com sua renda, com a educação fundamental, com a saúde básica, com o transporte, com a iluminação pública, com o saneamento. O Estado deve se preocupar com a segurança pública, com a saúde, com a educação, com apoio ao município para que os instrumentos públicos funcionem e atendam ao cidadão! E à União compete articular, coordenar e planejar de forma macro como o país deve se desenvolver.

Cobrança

Entre parlamentares, também se registram críticas à postura do presidente. Enquanto o senador Otto Alencar (PSD-BA) reclamava a presença do presidente na Bahia, embora tivesse enviado ministros para lá, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) cobrava mais sensibilidade da parte de Bolsonaro e anunciava a assinatura de um requerimento para que Comissão Representativa do Congresso atue, de imediato, em ações para socorrer as vítimas das enchentes. A comissão é encarregada de assuntos emergenciais durante os períodos de recessos.

O próprio presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, cobrou a edição de uma medida provisória que liberasse imediatamente recursos para os municípios atingidos, o que foi feito por meio da MP 1.092/2021. Um crédito extraordinário de R$ 700 milhões foi aberto ao Ministério da Cidadania para atender principalmente os estados da Bahia e de Minas Gerais. Os senadores Angelo Coronel (PSD), Otto Alencar e Jaques Wagner (PT) também uniram esforços para garantir assistência imediata à população atingida na Bahia.

Para o conselheiro do CAU, a situação caótica mostra a necessidade de retomada do planejamento urbano pelos municípios.

— A despeito do aquecimento global, continuamos não acreditando e desdenhando de sua repercussão. A cidade deve funcionar como um ecossistema, deve ter fluxos resolvidos, assistidos por sistemas de transporte efetivos e eficientes, deve ter equidade na distribuição de equipamentos urbanos, deve ter um uso racional e equilibrado de moradias e infraestrutura, deve oferecer trabalho, renda, cultura, diversão e ócio.

Margens

Na tentativa de equacionar os princípios do urbanismo com situações consolidadas, foi sancionada no dia 30 de dezembro uma lei que dá aos municípios o poder de regulamentar as faixas de restrição à beira de rios, córregos, lagos e lagoas nos seus limites urbanos. Sancionada com vetos pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, a  a Lei 14.285, de 2021, altera o Código Florestal  (Lei 12.651, de 2012) para permitir a regularização de edifícios às margens de cursos e corpos d’água em áreas urbanas.

O Projeto de Lei (PL) 2.510/2019, do deputado Rogério Peninha Mendonça (MDB-SC), foi aprovado pelo Senado em outubro, com emenda da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) que assegurava a largura mínima de 15 metros desocupados para as faixas marginais de cursos d’água em “áreas urbanas consolidadas”. Mas no retorno à Câmara, a emenda foi rejeitada.

O relator do projeto, senador Eduardo Braga (MDB-AM), disse, durante a votação, que as novas regras vão pacificar as divergências sobre as regras de preservação em áreas urbanas no Código Florestal. Segundo Braga, um erro na apreciação dos vetos ao texto original do Código Florestal deixou para essas áreas as mesmas regras de zonas rurais — que são mais restritivas — jogando dúvida sobre a legalidade de várias construções que já existiam.

— [O projeto] vai tirar da ilegalidade milhares de empreendimentos residenciais, comerciais, industriais e vai abrir a legalidade, com a responsabilidade ambiental necessária, para que novos projetos possam ser aprovados com segurança jurídica, garantindo ao investidor a pacificação geral com o Código Florestal — celebrou.

— Temos a regulamentação dos espaços ocupados, aqueles que já estão consolidados, e deixamos claro a inviabilidade de novos desmatamentos. Garantimos aquilo que nós temos hoje preservado nas Áreas de Preservação Permanente — disse Eliziane.

Fonte: Agência Senado

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