Pedro Duque: Filho de pai velho

Sou filho de pai velho. Quando nasci, meu pai já tinha cinquenta e dois anos — e um neto. Carregava no rosto as rugas que não são apenas marcas do tempo, mas rios de histórias. No cabelo, o branco não era só a cor: era poeira de estrada, sal de mar, farinha de oficina, fumaça de fogão.

Na escola, quando vinha me buscar, as professoras sussurravam:
— Seu avô chegou.
E ele, com aquele sorriso que não cabia na boca, enchia o peito para dizer:
— É meu filho.

Ser filho de pai velho tem prós e contras. O lado bom é nascer sob a sombra de uma árvore adulta, de raízes profundas. Ele já sabia consertar chuveiro, ventilador, micro-ondas. Já sabia cortar madeira e fazer o feijão perfeito. Sabia como ouvir, como esperar, como aconselhar. Já tinha se desiludido o bastante para ensinar que algumas batalhas não valem a pena — e outras valem a vida inteira.

O lado ruim é que o tempo se torna uma moeda rara. A gente sabe que não vai ter tantas manhãs. E cada tarde é um investimento alto.

Eu me lembro do barulho da chave no portão — um som que ainda mora na minha memória como um cão fiel que nunca se muda. Do perfume que ele usava e do último que comprei para ele, importado, levado ao hospital como se fosse um pedaço de casa. Eu me lembro dos boleros no rádio, de Julio Iglesias, e daquela sua mania de dizer “faça o bem sem ver a quem”.

Eu me lembro das vezes em que me levava para flutuar no mar, me deixando acreditar que a água era um colo sem fundo, indo a Niterói de barca. Eu me lembro da feira, dos pastéis, daqueles copinhos de plástico duro com cone de papel, que guardavam o caldo de cana gelado. Eu me lembro do Flamengo, dos jogos vistos com a fé de quem reza. Eu me lembro dos passeios ao Campo de Santana para “ver as cotias” com a alegria simples de quem encontra beleza de um animal diferente.

Tudo era feito para me agradar, me ensinar virtudes e valores que hoje tento plantar nos meus filhos. E aqui mora a ferida: como eu queria que meus filhos conhecessem o avô. Sei que seriam apaixonados por ele como eu sou.

Meu pai já tinha visto o mundo inteiro quando me viu nascer. E eu o vi partir cedo demais. A morte me visitou mais de uma vez, e sempre sem bater na porta. Quando levou minha mãe, já foi uma dor funda. Mas quando levou meu pai, foi como se tivesse arrancado o cais onde meu barco descansava.

Ele foi internado apenas uma vez. A primeira foi também a última. No dia em que entrou no hospital, a frente de uma gaveta minha caiu. Contei a ele, e ele prometeu consertar quando voltasse. Ele nunca voltou. E a gaveta segue como estava, não porque eu não saiba arrumar, mas porque consertá-la seria admitir que não preciso mais dele. E – Deus! – como eu ainda preciso.

Desde então, tento viver de modo que, quando eu fechar os olhos para este mundo, possa reencontrá-lo. No Céu, quero abraçá-lo — e abraçar meu filho, que também está lá. Quero que meus filhos aqui mereçam ir para onde o avô deles foi. Quero que todos nós nos encontremos num abraço que não terá fim.

A vida me foi ingrata em muitas coisas. Dura, dolorosa. Mas me deu um pai velho — e isso foi um presente raro. Hoje, com três filhos, carrego a responsabilidade de ser para eles o que ele foi para mim. Não perfeito, mas porto seguro. Não eterno, mas constante.

Perder um pai é como perder o endereço onde se guarda o mapa de si mesmo. Mas a fé me diz que o mapa não se perdeu, apenas mudou de coordenadas. Ele está a uma nuvem de distância, e vigia meus passos. E eu, cá embaixo, caminho, tropeço, recomeço — sempre olhando para cima, para que um dia, no Céu, possamos continuar a conversa interrompida.

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