Nelson Motta sabia que seria difícil ter lucro com um festival de rock ao ar livre em Saquarema, em 1976. Mas, quando idealizou as duas noites do Som, Sol & Surf, ele tinha em mente o exemplo de Woodstock — que rendeu dividendos só depois de encerrado, com um filme e um disco. Montou uma equipe qualificada para a gravação (com nomes como Miguel Rio Branco, Pedro Moraes e Jom Tob Azulay, sob direção de Gilberto Loureiro), mas por mil contratempos seu plano deu errado — não houve filme nem disco, e tudo que ele não teve foi lucro.
Aquelas imagens, adormecidas por décadas num armário da casa de Loureiro, ganham sentido agora. Elas são a base do documentário “Som, Sol & Surf Saquarema”, de Helio Pitanga, que depois de passar por festivais como Mimo e Fest Aruanda (onde ganhou o Prêmio Especial do Júri) será exibido nesta segunda-feira no Canal Curta, às 22h20m.
O filme se desenrola em torno da aventura que envolveu a realização do festival — definida por Motta como comparável ao ato dos descobridores de se lançar ao mar em caravelas. O evento reuniu artistas como Rita Lee, Raul Seixas e Angela Ro Ro, cercados de improvisos e imprevistos — como temporal, incêndio e queda do muro que cercava o prosaico campo de futebol onde aconteciam os shows.
— Conheci Gilberto Loureiro, falávamos dessas latas — conta o diretor. — Até que um dia peguei os rolos e levei para a Cinemateca do MAM. Chico Moreira (restaurador que trabalhou nas fitas) deu de cara um parecer: em um ano não ia dar pra usar mais os filmes. Fizemos a restauração aos poucos, enquanto eu partia pra colher os depoimentos de quem estava lá, como artistas, equipe, surfistas (o festival foi realizado simultaneamente a um campeonato de surf na cidade) , gente da plateia que encontramos pela internet.
Loureiro e Moreira morreram antes de verem o documentário pronto — o filme é dedicado a eles. Os depoimentos incluem, além de Motta e Leonardo Netto (parceiros na produção do festival), espectadores como o músico Lobão e o jornalista Tárik de Souza — comum a muitas entrevistas, o argumento “não lembro de muita coisa”, referência aos baseados, ácidos e “Mandrix com cerveja” consumidos lá.
A ideia de Pitanga era fazer um documentário centrado na música, que transportasse o espectador aos shows. Ele consegue. Há imagens ótimas — a despeito da má-conservação dos rolos — das apresentações de artistas como Raul, Rita e Ângela, além de bandas como Bicho da Seda e Made in Brazil. Mas o longa também dá um panorama comportamental da juventude som-sol-surf que tentava ser feliz em meio à ditadura. O filme afirma que o festival só foi possível porque os militares não estavam tão interessados assim em Saquarema.
— Se fosse no Rio o governo não ia deixar — acredita Pitanga. — Era um público de adolescentes criados sob uma ditadura, que não sabiam o que queriam da vida, mas sabiam que não queriam aquilo. Estavam lado a lado as tribos do rock e do surf. Não houve registro de brigas, apesar da multidão que foi pra lá. O fato de já existir a ponte Rio-Niterói, inaugurada em 1974, facilitou o acesso. Teve quem saiu de casa no Rio na sexta dizendo pra mãe que ia à praia e só voltou na segunda.
O documentário também mostra os tumultuados bastidores do festival. Apenas chegando lá, Motta percebeu que, ao contrário do que foi dito a ele, não havia palco nem cerca no local do show. Foi convocada uma equipe pra levantar a estrutura, até que acabou toda a madeira à venda na cidade. Os produtores passaram a rodar pela cidade à procura de obras que pudessem alugar madeira para que eles pudessem terminar.
— Essas coisas podem ser vistas como mambembe, mas pelo contrário, era uma amostra de profissionalismo naquelas condições, naquela época — avalia Pitanga. — Nelson Motta foi um visionário por levar, sem apoio nenhum, um festival assim para um cenário desses.
A chuva torrencial que interrompeu o primeiro dia de shows, o prejuízo tomado pelos produtores, o fato de filme e disco imaginados nunca terem saído criou um folclore de fracasso em torno do evento. O diretor vê diferente:
— Não teve nenhum fracasso. Houve problemas por falta de apoio, de estrutura. Mas o espírito me lembrou muito o do primeiro festival que fui na vida, o Rock in Rio de 1985.